Coleção de textos teatrais latino-americanos diminui lacuna cultural no diálogo artístico entre países da América Latina
O afastamento cultural entre o Brasil e os outros países da América Latina é
bem maior do que a distância geográfica, principalmente quando se trata de
acesso recíproco ao que se produz nos países do continente. Falando
especificamente sobre publicações de dramaturgia, vertente que atinge um público
bastante restrito, menor do que o de literaturas não dramáticas, como romances,
teoria teatral ou poesia, por exemplo, esse afastamento é ainda maior. Raros autores
latino-americanos de língua espanhola são publicados no Brasil, e desse conjunto,
os dramaturgos acabam sendo escassos. O mesmo se dá com autores brasileiros
e suas parcas participações no mercado editorial de língua hispânica na América
Latina.
Nesse sentido, uma iniciativa marcante de tradução e publicação é a coleção
P.E.R.I.F.É.R.I.C.O, que através da Escola Sesc de Ensino Médio, a Esem, no Rio
de Janeiro, publica sistematicamente dramaturgia de países latinos de língua
hispânica. O projeto já está em sua 4ª edição, tendo lançado até agora 15 autores
em traduções inéditas.
É muito mais comum o público brasileiro ter acesso a publicações da cena
de Espanha, como a já esgotada Nova dramaturgia espanhola, da 7Letras, ou a
coleção de novos autores espanhóis recentemente publicada pela Cobogó. Mas
textos teatrais argentinos, uruguaios ou mexicanos são raridade absoluta entre as
editoras nacionais. Isso não quer dizer que encenações desses autores sejam
inéditas no Brasil. Montagens de textos latino-americanos podem não ser tão
frequentes quanto às de autores de língua inglesa ou francesa. Entretanto,
dramaturgos como Daniel Veronese, Gustavo Ott, Eduardo Pavlovsky e Griselda
Gambaro, entre outros latino-americanos, acabam por ter também sua participação
na cena contemporânea brasileira.
Em um rápido panorama, apenas sobre encenações catarinenses de autores
latino-americanos, teremos o argentino Eduardo Pavlovsky, com Pavlov, encenado
pelo Grupo Teatro em Trâmite em 2013; Daniel Veronese, que teve encenados
Álbum sistemático da infância, Líquido tátil e Women’s pela Cia. Experiência
Subterrânea, respectivamente em 1997, 2002 e 2009; a importantíssima e ainda
inédita em português Griselda Gambaro, com A ingênua, Cia. Téspis, em 2008; e
o venezuelano Gustavo Ott, com Dois amores e um bicho, pela Cia. Experimentus
Teatrais, em 2010; e Passport, pela Cia. Rústico Teatral, em 2011, apenas para
citar algumas peças de maior circulação e relevância. Acontece, salvo engano, que
apesar das traduções originais, à época das encenações, nenhum desses autores
havia sido publicado em português.
É nesse sentido que a coleção P.E.R.I.F.É.R.I.C.O. supre uma lacuna
importante no acesso à literatura dramática latino-americana publicada no Brasil.
Em sua primeira edição, de 2012, foram traduzidos os textos Dois amores e um
bicho, de Gustavo Ott (Venezuela, tradução de Carlito Azevedo); Daniel e os leões,
de Maikel Rodrígues de la Cruz (Cuba, tradução de Pedro Freire); Desaparecidos,
de Claudia Eid Asbún (Bolívia, tradução de Ieda Magri) e Papai está na Atlântida,
de Javier Malpica (México, tradução de Cláudia Sampaio). Interessante notar a
inserção de alguns autores na cena brasileira contemporânea a partir dessas
traduções. O texto Dois amores e um bicho, por exemplo, teve pelo menos duas
montagens diferentes nos últimos anos, a do grupo Tentáculos Espetáculos (RJ),
em 2014, e a do Clowns Shakespeare (RN), em 2015, ambas utilizando a tradução
de Carlito Azevedo.
Em 2013, foram publicados Atribulações de um autor desconcertado, ou a
saga do espelho constante, de José Félix Assad Cuéllar (Colômbia, tradução de
Livia Lira e Leonardo Munk); Rua de mão única, de Sara Joffré (Peru, tradução de
Ieda Magri), O último tango – Musical de câmara em um ato, de Álvaro
Ahunchain (Uruguai, tradução de Carolina dos Santos, Josefina Mastropaolo e
Rodrigo Ferreyra) e A ilha deserta, de Roberto Arlt, (Argentina, tradução de Carlito
Azevedo). Arlt, um dos mais importantes escritores argentinos da primeira metade
do século XX, com raros textos publicados no Brasil, como a coletânea de contos A
armadilha mortal, publicada pela L&PM em 1997, e a de crônicas Águas-fortes
cariocas, pela Rocco em 2013, era inédito como dramaturgo no Brasil até a
publicação do texto A ilha deserta.
Aula dura, de Luís Barrales (Chile, tradução de Karen Basaure); Eusebio
Ramírez, penas e alegrias de um transformista, de Mariano Moro (Argentina,
tradução de Lucas Feres); Morrerei em Paris, de Juan Rivera Saavedra (Peru,
tradução de Carlito Azevedo) e Ninguém pertence a este lugar mais do que você,
de Mariana Gándara (México, tradução de Claudia Sampaio), foram os textos
publicados em 2014. Temas contemporâneos estão em evidência no volume, que
aborda desde contradições e violências da educação formal, em Aula dura; a
sensibilidade transexual no bem humorado Eusébio Ramirez, penas e alegrias de
um transformista; o teatro da memória e a participação dos espectadores em
Ninguém pertence a este lugar mais do que você e o engajamento político e
poético da ficção biográfica Morrerei em Paris.
Em sua edição mais recente, de 2015, a coleção traz os textos Mulher de
Juan, de Claudia Eid (Bolívia, tradução de Lucas Feres); Passport, de Gustavo Ott
(Venezuela, tradução de Carolina Santos); Morte parcial, de Juan Villloro (México,
tradução de Claudia Sampaio e Francisco Kochen) e, As histórias que se contam
os irmãos siameses, de Luis Mario Moncada e Martín Acosta (México, tradução de
Leonardo Munk e Livia Lira). Passaport, segundo texto de Ott publicado pela
coleção, já havia sido montado em 2011, pela Cia. Rústico Teatral, de Joinville
(SC), com tradução de Mônica Bonetti. O texto aborda justamente o conflito de
fronteiras, onde mesmo falando a mesma língua, guardas e civis não se
compreendem, exceto quando falam em inglês a palavra passport. Além de Ott,
com exceção de Juan Villoro, que publicou o romance Arrecife, pela Cia. das
Letras em 2014, os outros autores são inéditos em língua portuguesa.
Os livros da coleção são distribuídos gratuitamente a instituições de ensino
ou culturais, mediante contato com o departamento de cultura da Esem. Além
disso, vários projetos de leitura encenada de textos dramatúrgicos são
incentivados pela escola e por unidades do Sesc espalhadas pelo país, como o
projeto Dramaturgia – Leituras em Cena, que em 2015 promoveu a leitura
encenada de textos publicados pela coleção em 16 cidades de Santa Catarina.
Iniciativas como a coleção P.E.R.I.F.É.R.I.C.O., que visam aumentar o
diálogo entre nações vizinhas através de edições bilíngues e do incentivo a leituras
públicas de importantes dramaturgos do continente, não apenas contribuem para
ampliar o repertório de textos contemporâneos disponíveis para encenação nos
países do continente, mas também estabelecem diálogos capazes de criar um
fluxo de cooperação com potência para fortalecer laços artísticos que jamais
deveriam ter ficado em segundo plano.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal –
Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo
Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Publicado originalmente no site teatrojornal.com.br, em 07/06/2016.
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