Hoje um grupo de teatro foi impedido de apresentar seu trabalho em uma escola no interior de Santa Catarina, na cidade de Campos Novos. Alguns membros da comunidade se organizaram via mídias sociais e ameaçaram os artistas alegando o grande “perigo” que a obra em questão representava para as crianças. A peça A menina e sua sombra de menino, Produzida pela Harmônica Arte e Entretenimento, com direção de Pepe Sedrez, que tanto amedrontou alguns moradores de Campos Novos, conta a história de uma menina que além de brincar de bonecas e pular corda, gosta também de futebol, brincar com carrinhos e jogar videogame. Não há menções à sexualidade ou ao controverso e falacioso termo “ideologia de gênero”.
Entretanto, alguns temerosos moradores camponovenses questionaram em suas redes se “era normal uma menina brincar com coisas de menino”. Outros, apoiadores de um certo candidato misógino que não nominarei, disseram que era o caso de “partir para cima dessa aberração”, e outros ainda, disseram que era tudo culpa do “Addad”. Fico imaginando que grandes riscos uma menina que brinca de carrinho e joga videogame corre. Talvez, num futuro não muito distante, essa pobre criança aprenda a dirigir um carro, assuma a liderança de algum empreendimento digital, queira votar na esquerda e, pior de tudo, acabe tendo uma consciência política e estética diferente dos seus pais e vizinhos.
O fato do cancelamento do espetáculo na pequena cidade de Campos Novos dialoga com uma série de ocorrências que vêm ao longo dos anos gerando polêmicas entre camadas da população menos afeitas ao contato com manifestações artísticas, a leitura inclusive, como o cancelamento da exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em Porto Alegre, em 2017; ou as violentas e contínuas investidas contra o espetáculo O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu, de autoria da britânica Jo Clifford, e protagonizada pela atriz Renata Carvalho. O envolvimento de sites e movimentos com pendores fragorosamente fascistas como o MBL, e outros com a mesma índole voltada à ignorância metástica, movidos por fake news e alimentados por interesses escusos, é uma constante. Convém, mesmo de maneira breve, tentar entender como se manifestam e de onde surgem esses preconceitos perniciosos e a concepção de que a manifestação artística é uma ameaça aos “bons costumes” e ao “cidadão de bem”.
Há um vídeo circulando na internet em que um suposto “jornalista”, Paul Joseph Watson, expõe sua opinião perante o que ele acha que é arte de "justiceiros sociais de esquerda" e "marxistas culturais”, que manipulam o mercado em direção à uma “estética mais próxima do lixo do que da arte verdadeira". Em suas digressões, o jornalista faz uma série de confusões, como não saber diferenciar arte conceitual de moderna, comparações esdrúxulas como arte medieval e conceitual, bem como grosserias do mais baixo nível ao descrever obras e artistas contemporâneos.
Esse tipo de vídeo, bem como o teor eminentemente raso de todas as argumentações, e principalmente dos comentários da postagem com legendas em português, é sintomático em uma época em que o Ministério da Cultura do Brasil é sumariamente desmantelado, e onde uma parcela considerável da população com ensino superior, acesso à internet e à revistas e jornais acredita que sim, o Ministério da Cultura é desnecessário, ou representa um desperdício para o desenvolvimento do país. Analisar esses equívocos, e as correlações com os simplismos de pessoas que acreditam que a cultura e a arte são partes dispensáveis das políticas públicas é bastante salutar quando a expansão do pensamento fascista se espalha perigosamente entre a população, colocando em xeque décadas de desenvolvimento social e luta por direitos humanos.
A abrangência da postagem, mais de um milhão e meio de visualizações, pode nos dar ideia da repercussão do tema e da inserção desse tipo de pensamento em uma massa com cada vez mais acesso à informação e, talvez, menos reflexão sobre as consequências de suas posições na sociedade. A difusão desse tipo de ideia limitadora e ignorante sobre o que são estéticas contemporâneas, e o que elas representam em meio à exacerbação de um regime onde o capitalismo assume ares de religião instituída, é marcante como sintoma de uma época onde o turbilhão de imagens anestesia qualquer raciocínio que tenha a sensibilidade e a reflexão individual como mote.É nesse sentido que a análise de discursos de ódio à cultura se faz necessária e urgente em meio a uma horda de pseudo-entendidos que, mesmo sem nunca terem ido a uma exposição ou ao teatro, grasnam seus impropérios contra a cultura, desmerecendo os artistas e as manifestações artísticas aos quatros ventos das mídias sociais, fazendo um alarde tamanho que só a calúnia e a ignorância conseguem alcançar.
Uma das falácias contidas tanto no vídeo quanto nos comentários dos detratores da cultura, é que a arte contemporânea é elitista, coisa de uma “grande panelinha de babacas pretensiosos que tentam parecer sofisticados”. Para justificar este argumento, o “jornalista”, entre associações e conclusões disparatadas, afirma que o artista australiano hiper-realista Ron Mueck é “largamente ignorado”, enquanto Matisse é “adorado” pela crítica especializada. Ora, não há como comparar Matisse e Mueck, são pressupostos estéticos completamente dissonantes. É como tentar estabelecer comparações entre Bach e Stockhausen, Petrarca com Marllarmé, Michelangelo com Pollock; ou seja, não se pode analisar as obras do mesmo ponto de vista estético, histórico e social. São coisas completamente diferentes, mas que por um sofisma potencializado pela ignorância maciça, e um pouco de má fé, levam incautos comentadores de postagens duvidosas a compartilhar preconceitos, erros conceituais e históricos, bem como violências provindas da total falta de contato com qualquer coisa que não esteja de acordo como o padrão kitsch que rege o que se considera belo em meio à avalanche de estéticas vendáveis, facilmente deglutíveis e isentas de qualquer potencial reflexão sensível.
Uma outra falácia tanto do vídeo quanto dos comentários é que a comparação entre a qualidade das obras raramente se dá por meio de um pensamento estético, simbólico ou referencial. O mais comum é a questão do preço. Se a obra de Matisse vale mais do que a de Mueck, isso é uma injustiça monumental segundo o pretenso jornalista e seus seguidores. Ou seja, quanto mais qualidade possui uma obra, maior seu valor de mercado. Assim, quanto mais caro o ingresso do teatro, melhor a qualidade da peça; quanto maior o cachê melhor a música, e quanto maior o valor do quadro, melhor o artista, segundo o vídeo. Mas será mesmo que é o preço que determina que uma dupla sertaneja seja melhor do que um novo nome da música popular brasileira? Ou que a quantidade de vendagem de um livro seja determinante para a qualidade literária de um autor? Será que a subjetividade tem preço?
Talvez esse tipo de valoração monetária do mundo nos leve a um patamar aonde ao invés de uma subjetividade construída a partir do cognitivo, do simbólico, da construção social e representatividade histórica de uma obra, seu valor se resuma a sua inserção no mercado, ao quanto as pessoas a compram ou possuem, ou ao fetiche em sua posse, para usar um termo notadamente marxista. Se assim for, a razão e o raciocínio lógico sobre determinado tema não precisará mais de argumentos, comprovações factuais ou lógicas, mas quantidade de curtidas ou aprovações em mídias sociais, exatamente da mesma maneira em que a legitimidade de um impeachment não se dará mais pela observância ou não da constituição ou do regimento do congresso, e sim pela quantidade de votos angariados pelos opositores, como bem se pode observar no golpe legislativo de 2016.
Isso nos leva a uma concepção bastante tendenciosa do que é ou não arte, e do que possui ou não valor como objeto artístico. Se a qualidade na arte é apenas o que pode ser vendido, ou o que a maioria das pessoas considera de acordo com um patamar comum de potência estética, estamos fadados à asfixia subjetiva, a uma condição em que o novo, o intruso, o revoltado e o revoltante, onde o questionamento e a reflexão são tidos como aviltantes, patéticos, feios e não estéticos, pois refletir e revoltar-se não são coisas que agradem a maioria, recebam curtidas e compartilhamentos felizes. Pelo contrário, o que é estranho padece do que é criminoso, duvidoso, asqueroso e execrável.
E é por isso a performance Voice piece for soprano, de Yoko Ono, apresentada no MoMA em 2010, como parte de uma retrospectiva de arte contemporânea do museu (a peça original foi apresentada em 1961), alcançou tanta notoriedade, gerando indiscriminadamente rancor e ódio. Na peça a performer urra, grita, lamenta, arrota e vocifera aleatoriamente, selvagemente, criando sons estranhos, desconfortáveis, inusitados. A performance foi gravada e postada no Youtube, viralizando em centenas de milhares de visualizações, que ainda hoje geram enxurradas de impropérios em detrimento da arte contemporânea, da performance e da arte em geral, como se pode constatar na maneira agressiva com que Paul Joseph Watson se refere a ela em seu malfadado vídeo: “berrando feito uma cadela louca”.
O inusitado, o chocante, o contestador são elementos que destoam e se afastam do que se considera belo ou aceitável perante o mass media. Nesse sentido, uma performance como Macaquinhos pode exercer o seu frisson. Em Macaquinhos, os performers interagem tocando no anus uns dos outros. Alguns dos adjetivos mais utilizados para descrever a cena nas redes sociais são “absurdo”, “retardados”, “lixo”, “execrável” e palavras do gênero. Mas também “peça de esquerda”, “arte contemporânea”, “coisa do governo”.
Na história do teatro várias peças, autores e artistas foram considerados execráveis. No século XIX um dos maiores escândalos das artes cênicas na Europa foi a peça Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen (1828-1906). No texto não temos palavrões, nudez, violência explícita. Temos sim algo muito pior para as convenções da época: a liberação da mulher. Uma mulher que no século XIX escolhe abandonar o marido, trabalhar e viver a sua própria vida livre das convenções da época. Um escândalo de proporções continentais. Execrável para os padrões da época.
Nelson Rodrigues (1912-1980), clássico da dramaturgia brasileira, era um escândalo ambulante. Peça após peça, temas como adultério, perversão sexual, pedofilia, estupro, assassinato eram retratados num cotidiano muito mais familiar do que poderiam aceitar seus contemporâneos dos anos 1950 em diante. Ainda hoje montá-lo não é a coisa mais simples, e espetáculos como Viúva Porém Honesta, do grupo pernambucano Magiluth, encaram públicos violentos.
É sintomático, em um país cada vez mais reacionário, preconceituoso e fascista, que uma performance como Macaquinhos cause tanta polêmica. Pensar sobre a liberdade e a autonomia com o próprio corpo é fundamental em um país que anualmente assassina milhares de mulheres, travestis e homossexuais em uma verdadeira carnificina de gênero. Talvez Macaquinhos tenha alcançado seu objetivo levantando essas questões. Pensar a arte como além do agradável, do belo e do recreativo não é apenas fundamental para um público incapaz de processar discursos além do óbvio, mas uma questão de sobrevivência em um mundo tão dado à intolerância, à violência e à barbárie.
O trabalho, que existe desde 2011, já havia sido apresentado no Centro Cultural São Paulo e em diversas mostras nacionais e internacionais. É interessante que a repercussão sobre o espetáculo tenha se dado apenas a partir da apresentação do Sesc Ceará, em 2015, que tomou as precauções para alertar sobre a indicação etária e conteúdo da performance ao público. Atribuir a polêmica mais a uma instituição do que a obra em si denota interesses ocultos, muito além da mera revolta em questionar a qualidade do espetáculo, e é algo mais ligado ao político e econômico do que ao estético, visto que são justamente as mesmas bancadas reacionárias, repletas de fanáticos religiosos e neo-militaristas, que querem eliminar o chamado “Sistema S”, caso eleitas. Vale lembrar, nesse sentido, que o Sesc é o maior difusor privado da cultura do Brasil, responsável por alguns dos maiores e mais importantes projetos de difusão da arte no país.
Da mesma maneira, atribuir ao Ministério da Cultura a culpa por tudo o que se produz e financia culturalmente no Brasil é oscilar perigosamente entre a injustiça e a ignorância. Tentar punir uma instituição ou o mercado pela qualidade do que se produz artisticamente em um país é generalizar a parte pelo todo, julgando o todo a partir de um objeto em particular. Novamente, interesses políticos atuam perante uma massa de incapazes intelectuais, facistas e fanáticos religiosos que ingenuamente acreditam que eliminar o apoio à cultura vai melhorar as condições de vida e educação da sociedade, bem como economizar recursos aos cofres públicos. Um pensamento assim tão simplista, digno do vídeo do pretenso jornalista Paul Watson e seu pensamento dotado de uma acefalia medonha, denota não apenas a falta de acesso aos bens culturais e artísticos de um povo, mas a falta de consciência e de inteligência que só a cultura consegue suprir.
Pensar como Paul Watson e seus admiradores, criminalizando toda a arte contemporânea que não atenda aos seus gostos particulares, muito se aproxima das deliberações do congresso nazista de Nuremberg, em 1933, onde o próprio Hitler considerou a arte e os artistas modernos como uma doença, fruto das massas influenciadas por comunistas, feita por gente inferior e retratando gente inferior, uma arte degenerada e inacessível ao povo. Ele estava falando de Paul Gauguin, Picasso, Kandinski e outros artistas que para o ideal nazista de estética eram loucos ou charlatães. Corremos assim, em meio a trogloditas versados em estética kitsch, o risco de padecer da normalidade asfixiante de uma criatividade fadada a limites pré-estabelecidos pela ignorância contumaz, a estupidez facista e o medo pelo diferente.
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